Acórdão: Apelação Cível n. 2005.005342-2, de Palhoça.
Relator: Des. Joel Figueira Júnior.
Data da decisão: 24.01.2006.
Publicação: DJSC n. 11.847, edição de 17.02.06, p. 19.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO. I – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA AFASTADA. VEÍCULO ALIENADO FIDUCIARIAMENTE TRANSFERIDO À TERCEIRO SEM ANUÊNCIA DO PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO. II – ACIDENTE DE TRÂNSITO – MORTE DE MENOR DE IDADE – INEXISTÊNCIA DE CULPA CONCORRENTE DA VÍTIMA – DANO MORAL CONFIGURADO – COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA AO GENITOR – VALOR FIXADO DE ACORDO COM AS PROVAS CARREADAS NOS AUTOS. III - CONDENAÇÃO EM SALÁRIOS MÍNIMOS – PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL (ART. 7O, INC. IV, DA CF/88). RECURSO DESPROVIDO.
I – Desprovida de qualquer eficácia jurídica a transferência de veículo alienado fiduciariamente sem a anuência expressa e por escrito do proprietário fiduciário. Em caso de sinistro, responde o devedor fiduciário pelos danos sofridos pela vítima, mesmo não tendo sido ele o causador direto, por força do disposto no art. 1.363 c/c art. 186 e art. 927, todos do nCC.
II – Age com manifesta negligência o condutor de veículo que, para solucionar defeito de ignição, engrena a marcha ré do caminhão e executa operação denominada de “ligação direta” do motor de arranque, momento em que, dada a súbita partida, movimenta-se para trás atropelando a vítima, que morre brutalmente comprimida contra um muro de alvenaria.
III - No tocante ao dano moral experimentado pelo Autor, certamente é dos mais dolorosos, ou melhor, insuportável, pois, nada mais cruel para os pais, do que a morte súbita e violenta de um filho, notadamente quando em tenra idade (9 anos). Discorrer acerca desse tipo de sofrimento seria em vão, quiçá indescritível, pois somente aqueles que perdem um ente tão querido, são capazes de sentir, no fundo do coração e no âmago de sua alma, a dor inconsolável da perda de um rebento. Compensar sofrimento desta ordem é manifestamente impossível. O que há de se buscar, é uma decisão justa e eqüânime, voltada a minimizar a dor experimentada para sempre pelo Autor, onde a importância pecuniária encontra o seu verdadeiro caráter civil punitivo, preventivo e pedagógico. Qualquer importância pecuniária a ser fixada não trará de volta o filho arrancado do seio familiar ou, muito menos, trará felicidade ao Postulante. O que se deve buscar é a quantificação adequada para atingir os fins apontados e que não sirva de enriquecimento para o interessado e de empobrecimento do réu, máxime quando a importância haverá de ser por ele suportada faticamente e, para tanto, deve ser estabelecida de acordo com a sua capacidade econômica.
III – Proíbe a Lei Maior, atrelar o salário mínimo, para qualquer fim (art. 7o, inc. IV), razão pela qual, no caso, é substituído, de ofício, pelo equivalente em moeda corrente nacional.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível n. 2005.005342-2, da comarca de Palhoça (2ª Vara Cível), em que é apelante Luiz Mariotti Neto, sendo apelado Paulo Ricardo dos Santos:
ACORDAM, em Primeira Câmara Civil, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento, e, de ofício, corrigir a parte dispositiva da sentença no tocante a fixação em salários mínimos, substituindo por quantia fixada em moeda corrente nacional.
Custas na forma da lei.
RELATÓRIO
Paulo Ricardo dos Santos ajuizou ação de indenização por ato ilícito contra Luiz Mariotti Neto, em decorrência do acidente que culminou com a morte de seu filho menor de idade, Matheus dos Santos, provocado pelo veículo de propriedade do Réu e conduzido, na oportunidade, por seu filho, Márcio Luiz Mariotti.
Assevera que, conforme o Boletim de Ocorrência (fl. 17), o caminhão causador do sinistro encontrava-se parado, com a marcha-ré engatada, enquanto seu condutor, do lado de fora do veículo, tentava consertá-lo em razão de problemas verificados no sistema de ignição.
Em determinado momento, conforme o B.O., houve a partida do motor e, por estar o caminhão com a marcha ré engrenada, pôs-se subitamente em movimento, e, ato contínuo, atingindo a vítima, menor de idade que, naquele instante, passava por detrás do veículo, prensando-o contra a parede de um bar.
Requer a condenação do Réu no pagamento do valor correspondente a 300 (trezentos) salários mínimos a título de danos morais.
Contestando às fls. 30/37, o Requerido arguiu, preliminarmente, ilegitimidade passiva ad causam, pois desde a data de 28.10.1999, anteriormente ao sinistro, o veículo causador do acidente não mais lhe pertencia, tendo sido vendido ao seu filho Márcio Luiz Mariotti, conforme contrato de compra e venda anexado, devendo o Autor ser condenado por litigância de má-fé. Pleiteou, também, a denunciação à lide do condutor do veículo e refutou todos os argumentos levantados na inicial.
Saneando o processo, o Togado a quo afastou a preliminar de ilegitimidade passiva argüida pelo Réu, indeferiu o pedido de denunciação da lide, bem como a condenação do Autor por litigância de má-fé, terminando por designar audiência de instrução e julgamento (fls. 67).
Na fase instrutória, foram ouvidas testemunhas de ambas as partes (fls. 77/80 e 89).
Alegações finais às fls. 95/98.
Sentenciando (fls. 100/106), o Magistrado julgou procedente o pedido formulado na inicial, condenando o requerido a pagar, a título de danos morais, a quantia correspondente a 300 (trezentos) salários mínimos.
Condenou, ainda, o Réu ao pagamento das custas e honorários advocatícios fixados em 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação.
Irresignado, apela o Vencido (fls. 111/120), argüindo, preliminarmente, ilegitimidade passiva ad causam, pois o veículo não mais lhe pertencia quando do evento danoso, sendo pacífica a jurisprudência no sentido de que comprovada a venda do bem, o antigo proprietário não pode ser demandado em ação de responsabilidade civil, ainda que o veículo continue registrado em seu nome no órgão de trânsito competente, matéria esta já sumulada neste Tribunal de Justiça (Súmula 02), bem como pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 132).
No mérito, assevera que o Apelado litiga de má-fé e que o valor fixado na sentença a título de danos morais é excessivo, sendo incompatível com a situação financeira das partes. Afirma também ter havido culpa concorrente da vítima, importando o decreto condenatório em locupletamento indevido.
Foram apresentadas contra-razões (fls. 127/134).
Presentes os pressupostos de admissibilidade do recurso.
É o relatório.
VOTO
No que tange à preliminar de ilegitimidade passiva, tratando-se de questão de ordem pública, relativa às condições da ação, pode ser analisada em qualquer grau de jurisdição, não estando sujeita à preclusão, salvo quando alcançada pelo manto da coisa julgada em razão do exaurimento da matéria em todos os graus de recurso, o que não ocorreu in casu, nada obstante analisada pelo Juiz sentenciante quando do saneamento do processo.
Compulsando os autos, constata-se que o veículo causador do infortúnio que culminou com a morte do filho menor de idade do Autor foi adquirido pelo Réu através de contrato com cláusula de alienação fiduciária (fls. 40/42), firmado em 13 de outubro de 1999 (fl. 42v.), comprometendo-se ao pagamento de 24 (vinte e quatro) prestações mensais, vedada a transferência do bem alienado a qualquer título sem a anuência expressa do credor fiduciário, assumindo o devedor a condição de fiel depositário.
Conforme, ainda, os documentos de fls. 43/45, o Apelante, em 28.10.1999, firmou com seu filho, Márcio Luiz Mariotti, um contrato particular de compra e venda do veículo financiado.
Sobre esse tema, já tive oportunidade de me manifestar doutrinariamente, no que concerne a posse e propriedade, em sede de alienaçao fiducuiária:
“Com a constituição da propriedade fiduciária e os desdobramentos da posse, o credor mantém-se na qualidade de único titular do direito real (proprietário fiduciário/propriedade resolúvel) e possuidor indireto (posse absoluta ou própria indireta), enquanto o devedor permanecerá durante todo o período ajustado como possuidor direto do bem móvel infungível (posse relativa ou não-própria direta), objetivando tornar-se o proprietário pleno em face do adimplemento do contrato (propriedade superveniente).” (Ação de busca e apreensão em propriedade fiduciária, São Paulo, RT, 2005, p. 47).
E, mais adiante, assinalo:
“O tema alusivo aos direitos do devedor fiduciário é versado no art. 1.363 do Código Civil [atual], conferido-lhe poderes fáticos para, às suas expensas e risco, usar da coisa segundo a sua destinação, enquanto não vencida a dívida, na qualidade de depositário do bem alienado, com todos os seus consectários.” (op. cit., p. 48/49).
Transferindo o devedor fiduciário a posse do bem alienado ao seu filho (causador do sinistro) sem a anuência expressa e por escrito do proprietário fiduciário, infringiu o disposto no art. 1.363 do CC/02, porquanto depositário fiel do bem em questão.
Por esses motivos, rejeita-se a preliminar de carência de ação.
No que tange ao mérito, melhor sorte não assiste ao Apelante, em face da ausência de provas acerca da eventual culpa concorrente da vítima. Inversamente, restou cabalmente comprovada a negligência do condutor do caminhão causador do sinistro, ao deixá-lo com a marcha ré engrenada enquanto efetuava trabalho mecânico objetivando solucionar defeitos no motor de arranque, fazendo-se mister realizar “ligação direta”.
Manifestamente previsível que, ao dar partida no motor, o veículo, com a marcha engrenada, haveria de movimentar-se, o que de fato ocorreu, no exato momento em que a pequena vítima passava por detrás do caminhão, terminando por ser brutalmente comprimida contra uma parede, ocasionando-lhe a morte em face das lesões gravíssimas sofridas.
Conforme bem assinalou o ilustre Togado, Juiz José Maurício Lisboa, ao proferir a sentença impugnada:
“... a prova fundamental nos presentes autos é a prova testemunhal, que na fase de instrução da lide, corroborou pela ação imprudente e negligente do condutor o veículo.
Assim determinou Evori Alves Filho, inquirido às fls. 78:
"que não presenciou o acidente; que quando chegou ao local do acidente já havia ocorrido; que chegou ao local logo após o acidente Ter ocorrido; que soube que um caminhão havia machucado um menino e o mesmo havia sido levado para o hospital; que através de terceiros que estava no local soube que um rapaz estava tentando ligar o caminhão de mudança e que a vítima estava o dita todo no local ajudando o mesmo; que ao ligar o caminhão comentou-se que talvez a marcha do mesmo estivesse engatada vindo a atropelar o menor que estava atrás do mesmo".
A testemunha Maria Aparecida Alves Mineli, inquirida às fls. 80, assim determinou:
"Que somente tem a dizer que uns minutos antes do acidente ocorrer esteve no local onde estava um caminhão fazendo uma mudança de uma conhecida, e da qual iria se despedir; que no local estava o referido caminhão carregado com a mudança e um rapaz estava mexendo na cabine do caminhão; Que não sabe o que o rapaz estava fazendo na cabine do caminhão pois não entende nada de carro; que saiu do local e minutos depois vieram lhe avisar que ocorreu o acidente".
Correlato é o depoimento de Ivonei Roberto Wilske, inquirido às fls. 89, in verbis:
"que no dia dos fatos o depoente se encontrava deitado na parte de trás da caminhonete dirigida pelo filho do requerido, dormindo, quando em determinado momento escutou barulhos e saiu para ver o que acontecia; que nesse instante viu uma mulher gritando, pedindo ajuda para levar uma criança para o hospital; que esclarece que a caminhonete estava estacionada, carregada com uma mudança, numa rua com pequeno aclive, e por motivos que o depoente desconhece, ela acabou correndo para trás cerca de 0,40 cm e bateu contra a frente de uma casa onde estava sendo carregada a mudança; que justamente nesse instante passava atrás da caminhonete, de bicicleta, uma criança, a qual acabou tendo a cabeça prensada contra a parede da casa;"
No tocante ao dano moral experimentado pelo Autor, certamente é dos mais dolorosos, ou melhor, insuportável, pois, nada mais cruel para os pais, do que a morte súbita e violenta de um filho, notadamente quando em tenra idade (9 anos de idade).
Discorrer acerca desse tipo de sofrimento seria em vão, quiçá indescritível, pois somente aqueles que perdem um ente tão querido, são capazes de sentir, no fundo do coração e no âmago de sua alma, a dor inconsolável da perda de um rebento.
Compensar sofrimento desta ordem é manifestamente impossível. O que há de se buscar, com uma decisão justa e eqüânime, é tentar minimizar a dor experimentada para sempre pelo Autor, onde a importância pecuniária encontra o seu verdadeiro caráter civil punitivo, preventivo e pedagógico.
Qualquer importância pecuniária a ser fixada não trará de volta o filho arrancado do seio familiar ou, muito menos, trará felicidade ao Postulante. O que se deve buscar, em situações como esta, é a quantificação adequada para atingir os fins apontados e que não sirva de enriquecimento para o interessado e de empobrecimento do réu, máxime quando a importância haverá de ser por ele suportada faticamente e, para tanto, deve ser estabelecida de acordo com a sua capacidade econômica.
Assim, o acolhimento do pedido na forma articulada na petição inicial é providencia que se impõe.
Há de se modificar, ex officio, o indexador utilizado na sentença recorrida, em razão da proibição constitucional de vinculação do salário mínimo, para qualquer fim (C.F., art. 7o, inc. IV, in fine).
Esse entendimento vem sendo adotado reiteradamente por esta egrégia Câmara, seguindo a linha estabelecida pela Corte Constitucional, consubstanciado em aresto da lavra do Min. Moreira Alves:
“Dano moral. Fixação de indenização com vinculação a salário mínimo. Vedação Constitucional. Art. 7º, IV, da Carta Magna. - O Plenário desta Corte, ao julgar, em 01.10.97, a ADIN 1425, firmou o entendimento de que, ao estabelecer o artigo 7º, IV, da Constituição que é vedada a vinculação ao salário-mínimo para qualquer fim, "quis evitar que interesses estranhos aos versados na norma constitucional venham a ter influência na fixação do valor mínimo a ser observado". - No caso, a indenização por dano moral foi fixada em 500 salários-mínimos para que, inequivocamente, o valor do salário- mínimo a que essa indenização está vinculado atue como fator de atualização desta, o que é vedado pelo citado dispositivo constitucional. - Outros precedentes desta Corte quanto à vedação da vinculação em causa. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE n. 255.488/PR, J. em 11.04.2000, DJU de 16.06.2000, p. 39).
DECISÃO:
Nos termos do voto do relator, decidiu a Câmara, por votação unânime, negar provimento ao recurso e, de ofício, afastar a fixação da verba compensatória em termos de salários mínimos, fixando-a em R$ 90.000,00.
Participou do julgamento a Exma. Desª. Maria do Rocio Luz Santa Ritta.
Florianópolis, 24 de janeiro de 2006.
Sérgio Roberto Baasch Luz
PRESIDENTE P/ ACÓRDÃO
Joel Dias Figueira Júnior
RELATOR
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